Pub. em 15 de fevereiro de 2016.
O aumento, desde outubro do ano passado, dos casos de microcefalia em bebês associados à infecção pelo zika vírus, tem suscitado discussões de toda ordem.
No campo da infectologia, apesar dos fortes indícios de que realmente é o zika o responsável pelo surto, ainda não há a necessária comprovação científica. As pesquisas nos dirão em breve.
Na seara social e política, as velhas discussões sobre a inapetência do aparelho estatal brasileiro para lidar com casos dessa grandeza, e a crônica desagregação cívica da população que pouco colabora, estão na ordem do dia.
Ao declarar os casos de microcefalia e outras doenças neurológicas em áreas afetadas pelo vírus como “emergência internacional”, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o nível de alerta ao mesmo do ocorrido com o surto de ebola na África Ocidental, em 2014.
Contudo, o que causou polêmica foi a declaração, no início do mês, do principal comissário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), ZeidRa’adAlHussein, conclamando os países afetados pela epidemia a disponibilizar aconselhamento sobre saúde sexual e reprodutiva para mulheres e permitir o direito ao aborto.
Antes de refletir, vozes (apressadas) de setores religiosos e moralistas de todo gênero se levantaram contra a orientação. A Igreja Católica Apostólica Romana, que há dois milênios se intitula a única procuradora de Deus na terra, foi ainda mais incisiva em suas críticas, afirmando que o homem não pode mudar os Seus desígnios.
Paixões à parte, o fato é que no Brasil o aborto só é permitido legalmente em casos de risco de morte para a mulher e em gestação proveniente de estupro.
Numa atitude ostensiva de ativismo judicial (nesse caso, necessária), o Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2012, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, estendeu a possibilidade de interrupção da gravidez, sem que se configure crime, para casos de fetos anencéfalos.
Anencefalia é uma malformação rara do tubo neural (estrutura embrionária que dará origem ao cérebro e à medula espinhal), caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana.
Estudos consolidados no país demonstraram que, dos fetos que possuem anencefalia, setenta e cinco por cento já nascem mortos, e os que sobrevivem, salvo raríssimas exceções, têm uma expectativa extra-uterina de no máximo quarenta e oito horas.
Induvidável que o bem jurídico tutelado nos casos de aborto é a vida do ser humano em formação, que recebe tratamento autônomo da ordem jurídica vigente. Porém, no caso de anencéfalo não há vida viável sendo gerada, faltando-lhe o suporte fático-jurídico, ou seja, a potencial vida humana a ser protegida; não há sujeito passivo por faltar-lhe as condições fisiológicas que o permita tornar-se pessoa.
Nessa senda, a maioria dos ministros do STF entendeu que somente o feto que apresenta capacidade de tornar-se pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto, motivo que impossibilita a repercussão penal no caso de interrupção da gravidez de anencéfalo.
Esse entendimento não se aplica aos fetos microcefálicos, que, ao contrário dos anencéfalos, têm viabilidade biológica (suporte fático-jurídico), expectativa que impele o Estado a protegê-los.
Há quem defenda a ideia de que, em casos de extrema gravidade, onde há a comprovação cabal de que o bebê (em razão da microcefalia) não terá uma condição de vida além da do estado vegetativo, se deveria facultar à mulher a decisão de interromper (ou não) a gravidez. ]
Não vejo como juridicamente prosperar esse entendimento, principalmente se levarmos em consideração que, cientificamente, ainda há mais perguntas do que respostas nos casos envolvendo microcefalia, incertezas que inibem qualquer decisão nesse sentido dos tribunais, pouco afeitos a investidas em terrenos movediços.
Cândido Ocampo é advogado, por 10 anos assessorou o Cremero; é membro da Soc. Bras. de Direito Médico e Bioética; presidente da Diretoria de Rondônia da Asociación Latinoamericana de Derecho Médico (Asolademe).